Quando o assunto é se vestir, instintivamente, pensamos em algo visual: cores, estampas, modelagens. A moda, por si só, é algo extremamente visual, ligada à estética. Mas, você já parou para pensar como é essa relação para as pessoas que não podem enxergar? A designer e empresária Cíntia Caroline não só pensou, como colocou a empatia em prática e criou a marca Costuras do Imaginário.
Cíntia desenvolve peças de roupas e itens de decoração com estampas em braille, além de pinturas sensoriais. Suas criações ajudam a tornar a moda mais inclusiva, resultando em um trabalho social e político mais do que necessário. Conheça mais sobre a Costuras do Imaginário:
Como você aprendeu braille e por que surgiu esse desejo de aprender?
O braille entrou na minha vida ao acaso e como um presente do universo, há doze anos. Eu estava desenvolvendo um projeto de pós-graduação, um livro. E, nesse livro, eu contava a história de um fotógrafo, por meio de poesia e fotos. Eu estava muito imersa nesse universo, da imagem, da visão e, em um determinado momento, me veio a pergunta: e se esse fotógrafo não enxergasse? Como seria a busca dele pelo mundo? E, bastou essa pergunta, para eu iniciar todo o meu processo de busca, conhecimento e aprendizado sobre a deficiência visual e o braille. Aprendi a escrita braille, adquiri minha reglete e punção, que são instrumentos para a escrita (e que são as mesmas que uso até hoje!) e me adentrei com muita empatia, calma e afeto nesse universo.
Com isso, eu alterei todo o projeto do livro, acrescentando um personagem, Francisco, que era cego. O livro ganhou poemas em braille, um repertório sonoro para acompanhar a leitura e elementos sensoriais ao longo das páginas. Desde esse dia, que eu aprendi o braille, eu nunca mais parei.
Como nasceu a Costuras do Imaginário?
O nome Costuras do Imaginário surgiu em 2009, desde os meus primeiros estudos e projetos com o braille. Ele surgiu pela ideia de ser um enlace do que se é imaginário. Costuras não somente no sentido de se costurar, com linha e agulha, mas no sentido de conectar tudo que há no imaginário. O imaginário é um lugar afetuoso que encontrei para conectar tudo aquilo que não é visto.
A Costuras nasceu em forma de marca em 2016. Desde 2009, a ideia já existia e o planejamento para o início da marca também. O primeiro insight aconteceu na casa de alguns amigos, cegos, que conheci desde o início da aprendizagem do braille. Eles estavam me contando sobre a dificuldade que tinham em organizarem o guarda-roupa e escolherem qual peça usar. Precisavam decorar que aquela blusa, com determinado botão, era verde. Aquela outra, com aquele tipo de gola, era azul e assim por diante. Foi aí que pensei: eu tenho as ferramentas necessárias para apoiar essa questão. Meus pais têm uma confecção desde que eu nasci. Eu cresci em meio às tintas, tecidos, linhas. Eu tinha um repertório suficiente para saber que aquela questão poderia ser solucionada por meio da estamparia. O que se tornaria mais pra frente, uma estamparia em braille.
Após muitos testes e consultoria com esses mesmos amigos, chegamos em um modelo de estampa ideal, com o braille em um relevo adequado para leitura. E, assim, começou a ideia de criar os produtos com as estampas em braille. O propósito da marca, desde o seu planejamento, sempre foi levar acessibilidade e inclusão por onde passasse. Além de termos nossa comunicação e nossos produtos acessíveis, nossa missão é colocar isso em pauta. É permitir que cada pessoa que tenha acesso à marca, seja por uma postagem nas mídias sociais, seja por essa entrevista, reflita: o que eu também posso fazer para apoiar a causa da acessibilidade? O que eu consigo mudar e transformar no meu dia a dia?
Você define a CI como uma marca social. Explica um pouco mais sobre isso pra gente?
Sim, a Costuras do Imaginário, desde a sua criação, nasceu como uma marca dentro do empreendedorismo social. Ou seja, estamos comprometidas com produtos e ações que tenham um impacto de melhorias e transformações na sociedade. Isso vem desde a base dos nossos produtos, que tem como objetivo principal serem inclusivos e acessíveis para pessoas com deficiência visual, até mesmo a nossa comunicação a as pautas que geramos em nossas mídias, todas com o intuito de construirmos uma sociedade mais inclusiva e acessível para todas e todos.
Você considera a CI uma marca política? Por que?
Com certeza. Se desde o início, criamos uma marca para ser uma aliada na luta a favor da inclusão e acessibilidade, principalmente de pessoas com deficiência visual, já somos uma marca política desde o princípio.
Toda revolução e transformação dentro de uma sociedade, parte de uma luta política. A vivência das pluralidades de corpos, é um ato político. A luta pela equidade é um ato político. A busca pela igualdade de gêneros é um ato político. É impossível falar sobre deficiência, capacitismo, feminismo, igualdade, sem falar sobre política. Sem entender sobre direitos, políticas públicas, deveres e conquistas.
Então, não teria como a Costuras existir se ela não fosse uma marca política. Todas essas lutas e transformações são intrínsecas à nossa existência enquanto empresa e enquanto desejos para toda a sociedade.
Você faz ainda a ilustração sensorial, certo? Como é isso?
Sim, fazemos! A aquarela sensorial eu faço junto com meu companheiro de vida, que também é um artista incrível, o Xico. Certo dia, recebemos um pedido: “Cintia, estou perdendo a visão. Vejo-a indo embora com o passar dos dias. Quero uma pintura minha e do meu namorado, mas temo não poder vê-la depois. Se for possível contorná-la com relevo, para eu poder relembrar dessa foto com as pontas dos meus dedos, ficarei muito feliz”.
Desde que lançamos o projeto das aquarelas, já tínhamos a ideia de tornar a pintura acessível, mas ainda não sabíamos se daria certo ou não.
Essa cliente, Elaine, tem retinose pigmentar, é uma doença incurável e progressiva. E, fazer essa pintura de forma que ela pudesse tocar depois e senti-la, enxergá-la com os dedos, foi muito especial pra gente. O Xico faz a aquarela, de acordo com a fotografia enviada pela pessoa, e eu faço o relevo necessário na pintura, para que a pessoa possa sentir os detalhes e o contexto da imagem, com as pontas dos dedos.
Já fizemos algumas aquarelas sensoriais e o resultado, bem como o retorno de cada pessoa que recebe, é sempre muito tocante e muito sensível pra gente. Tornar a arte acessível e inclusiva, é urgente. Precisamos nos dedicar e investir em cenários onde a arte alcance realmente todas as pessoas.
Que mensagem deseja passar com suas criações?
A Costuras diz muito do que eu observo e sinto. E acho que as principais mensagens que entram nesse contexto são de liberdade e afeto. Acredito profundamente que o afeto é capaz de transformar toda uma sociedade, que o afeto é, de fato, revolucionário. E sou uma pessoa que acredita verdadeiramente na nossa liberdade. Na liberdade dos nossos corpos, de podermos ser exatamente quem somos, sem amarras, máscaras ou medos. E acho que essas buscas são o que norteiam todas as minhas criações.
Qual seu grande sonho com a CI? Onde almeja chegar?
Este ano, estamos construindo, em BH, um lugar que será uma mistura de loja, ateliê e espaço para educação e oficinas. Acho que esse é o começo de um próximo passo e de mais um sonho pra gente, que é de construir um espaço acessível que seja usado para transformar pessoas, realidades e vivências. Será um ambiente totalmente acessível, onde a inclusão continuará sendo base para todas as nossas ações no local.
Eu almejo, com a Costuras, chegar em um futuro onde não seremos uma das únicas empresas que utilizam o braille e QRCode, por exemplo, em todos os produtos. Desejo chegar em um lugar que seremos sim, lembradas pela iniciativa e pelo pioneirismo, mas já faremos parte de um meio comum a todas e todos. O que eu desejo é chegar nesse lugar em que a acessibilidade será, de fato, uma realidade dentro da nossa sociedade.
Para acompanhar o trabalho da Costuras do Imaginário, siga o perfil da marca no Instagram!
Que entrevista maravilhosa! Parabéns por levantar pautas assim e promover empreendedoras com propósito.